quinta-feira, agosto 28, 2008

TEATRO DE MARIONETAS DO PORTO ACTUA EM BRASÍLIA



Os espectáculos CABARET MOLOTOV E MISÉRIA serão apresentados pelo Teatro de Marionetas do Porto na nona edição do CENA CONTEMPORÂNEA – FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE BRASÍLIA.



As actuações da companhia portuense decorrem de 26 a 29 de Agosto no Teatro Goldoni e no Teatro do Centro Cultural do Banco do Brasil, num total de cinco representações.



O Festival CENA CONTEMPORÂNEA é o mais importante evento teatral do Brasil, realizando-se desde 1995 e contando com o patrocínio da Petrobras.



Sobre o CENA CONTEMPORÂNEA 2008

Chegamos à nona edição do Cena Contemporânea trazendo a Brasília espetáculos de criadores inéditos no Brasil, artistas intrigantes que têm renovado a cena teatral na Europa, Oriente Médio e América do Sul, trabalhos que misturam linguagens e propõem jogos de ilusão ótica.

O Festival acontece de 26/8 a 7/9, ocupando mais de dez dentre as principais salas de espetáculos de Brasília.

A programação internacional é feita de nomes como Angelica Liddell, uma jovem criadora espanhola cuja radicalidade tem conquistado a crítica na Europa; os jovens atores do grupo loscorderos, também da Espanha; os atores da Orto-Da Theatre Group, de Israel; os atores-manipuladores do Teatro de Marionetes do Porto; os italianos do mágico e imperdível Jardim Japonês; a poesia visual feita com o corpo da dançarina e coreógrafa Maria Donata D’Urso; o teatro venezuelano de Gustavo Ott e o grupo peruano Cuatrotablas que nos apresenta a vida do poeta César Valejjo.

A programação se completa com a participação de alguns dos mais importantes espetáculos e grupos do Brasil e de Brasília, além de oferecer à cidade uma mostra para as crianças, mostra de cinema, dezenas de atividades de formação e especialização, com ênfase na dramaturgia e um seminário que discutirá as relações entre Política e Cultura.

Nas noites quentes do Planalto Central o ponto de encontro entre artistas e o público será na Praça do Museu da República, onde teremos espaços para diversão, arte e entretenimento.

Outra novidade é a parceria com a I Bienal de Poesia de Brasília que, de 3 a 7/9, estará compartilhando connosco os palcos e espaços do Festival.

Durante os 13 anos que nos separam da primeira edição do Cena Contemporânea, em 1995, mais de uma centena de grupos se apresentaram em Brasília para uma platéia que tem lotado todos os espaços, demonstrando, a cada ano, sua inteligência e compromisso com a construção de uma cidade melhor.

É para este público, inteligente e interessado, que dedicamos esta nona edição.

(texto extraído do site oficial do Festival http://www.cenacontemporanea.com.br/festival.html)





Sobre MISÉRIA:



Espectáculo baseado num conto popular.

Miséria, um pobre ferreiro, engana a Morte e é assim condenado à eternidade.

“Falou então a Morte do alto da nogueira e fez com o velhinho um contrato: poupar-lhe a vida enquanto o mundo fosse mundo.

O velhinho consentiu e a Morte desceu. Por isso, enquanto o mundo for mundo a Miséria existirá sobre a Terra.”

(conto popular)

Encenação e interpretação – João Paulo Seara Cardoso

Cenografia e Marionetas – Rosa Ramos

Texto – Álvaro Magalhães

Música – João Loio





CRÍTICAS

A INQUIETANTE ETERNIDADE
(...)

Podemos dizer que a magia indiscritível deste trabalho no Teatro de Belomonte, assenta na amantíssima manipulação (cerimonial) dos vários elementos (amuletos) cénicos: bonecos, objectos, fogo, explosões, o uso da voz e da música.

E João Paulo Seara Cardoso afirma-se como um xamane, há muito iniciado, e na posse completa de todos os encantamentos necessários para o êxito da realização ritual.

(...)

José Caldas

in Jornal de Notícias, 18-06-1992

Miséria para sempre
(...)

um espectáculo perfeito no seu género: bem estruturado, plasticamente elaborado, atravessado pela magia, repassado de humor.

Manuel João Gomes

in Público, 18-10-1992

A perfeição das coisas
(...)

O que há de espantoso neste espectáculo é o jogo entre o que pertence às marionetas e o que pertence ao actor em carne e osso, ao mesmo tempo manipulador e intérprete .

(...)

Não há muito a dizer de um espectáculo como este. Obra-prima do teatro de marionetas, obra-prima do teatro simplesmente. Veja-o quem possa, espero vê-lo ainda mais vezes.

Carlos Porto

in Jornal de Letras, 3-11-1992

(...)

...um pequeno milagre que se desenrola diante dos meus olhos, certamente o mais belo espectáculo de marionetas que me foi dado ver nos últimos anos.

As únicas palavras que me vieram ao espírito, foram aquelas que Robert Shumann empregou após ter assistido pela primeira vez a um concerto de Frédéric Chopin: “Chapeau bas, Monsieur. Voilá du génie.”

Marissimo Shuster

in Ave Marionnette, 1992

Uma festa cénica dos sentidos
(...)

Belíssima, encantadora, mágica, um primor. Fica difícil falar de Miséria sem usar adjectivos. A partir desse enredo, extraído de um conto popular português, o TMP realiza uma verdadeira comunhão com o público. Questões essenciais da condição humana são tratadas com beleza, elegância e muita competência. O tempo, que passa, a necessidade da morte, as tentações da vida são abordados com muita sabedoria. Miséria uma obra tocante.

(...)

Ivana Moura

in Diário de Pernambuco, 30-03-1993

(...)

Miséria é uma experiência encantatória, uma celebração das raízes mais populares do teatro (...) de rigor interpretativo absoluto.

In The Jerusalem Post, 13-08-1993





Sobre CABARET MOLOTOV:



O circo e as marionetas aproximam-se na poética do voo, as marionetas sem se sujeitarem às leis da gravidade, os artistas de circo desafiando-a. Uma vida aérea intermitente une a marioneta e o trapezista.



Cabaret Molotov é um espectáculo que resulta de um trabalho de experimentação em que tentamos levar o nosso modo de fazer teatro ao encontro de uma certa poética associada ao circo.



Também está presente nesta criação uma aproximação ao teatro musical com marionetas, que teve grande expressão na Europa nos meados do século passado.



É pois um cabaret melancólico que se inspira nas nossas memórias, mas iluminado pela nossa visão contemporânea do teatro e do mundo.



Em Cabaret Molotov, deambulam coristas apaixonadas, trapezistas, clowns absurdos, músicos de sete instrumentos, homens-coelho, homens-bala, ursos ciclistas, caniches cantores, dançarinos e bailarinas que dançam ao som de valsas, tangos, polkas, tarantelas e velhas canções de Kurt Weil.



Terá o Cabaret Molotov existido, ou tudo não passará de um lugar inventado por Vladimir, o Russo, para cenário do seu amor à trapezista Matrioska?

Encenação e cenografia - João Paulo Seara Cardoso

Marionetas - Erika Takeda

Figurinos - Pedro Ribeiro

Coordenação coreográfica - Isabel Barros

Música - Gotan Project, Eric Satie, Kurt Weil, Robert Miny, Yann Tiersen

Texto da Corista – Pablo Neruda

Desenho de luz - António Real e Rui Pedro Rodrigues

Produção - Sofia Carvalho

Interpretação - Edgard Fernandes

Sara Henriques

Sérgio Rolo

Shirley Resende (instrumentista)

Operação de luz e som - Rui Pedro Rodrigues

Assistente de encenação - Pedro Ribeiro

Assistente de produção - Pedro Miguel Castro

Técnicos de construção – Inês Coutinho

Filipe Garcia

Pedro Pereira

Construção de estruturas - Américo Castanheira, Tudo-Faço

Confecção de figurinos – Cláudia Ribeiro (coordenação técnica), Celeste Marinho (mestra-costureira), La Salete Oliveira, Maria Glória Sousa Costa, Esperança Sousa, Ana Maria Fernandes, Rosa Pinto, Alice Assal (costureiras), Catarina Barros (aderecista), Patrícia Mota, Joana Caetano (assistentes)

Penteados e maquilhagem – Lea – b, cabeleireiros

Prof.ª danças de salão – Paula Basto

Montagem de luz - Rui Maia

Design gráfico- Daniel Marques

Fotografia de cena- Paulo Barata

Apoio - Orquestra Nacional do Porto





CRÍTICAS



O Circo de pulgas e o cabaré sublime

Se pensava que ao entrar num cabaré de apelido Molotov ia poder fumar à vontade e beber álcool, desengane-se. Não se encontrou tabaco nem cocktails fumegantes, nem pessoas a bailar por entre as mesas, no intervalo das canções e dos números de variedades deste Cabaret Molotov. Obviamente, o propósito do Teatro de Marionetas do Porto é mais do que entreter a plateia. Instalado no Convento de São Bento da Vitória está um cabaré, sim, mas no palco, para ser visto com toda a atenção. Na verdade, mais do que um cabaré fictício, o espectáculo é um cocktail cénico que tem de tudo um pouco: marionetas, dança, teatro, circo, music-hall, juntos numa reunião familiar em que os parentes próximos e afastados viessem das mais longínquas pátrias e tradições das artes cénicas, apresentando os seus números e falando versões macarrónicas de russo, italiano, alemão e espanhol, numa profusão de actos e línguas de palhaço. Há coristas, trapezistas, acrobatas, homens-bala e funâmbulos, ursos e coelhinhas. Esta grande família de artistas é criada por actores e marionetas alternadamente, num circo em miniatura que muda para a escala real sempre que o olhar do espectador é focado nos manipuladores, e regressa a um mundo de sugestão, povoado de profissionais do espectáculo, causado pela manipulação dos objectos. Todos se encontram num lugar de lembrança popular: a área de jogo encimada pelo pano de boca que evoca tanto a arena de circo como os tablados mais escusos. De repente, é como se este fosse o espectáculo ideal para encerrar mais um ano de teatro no Porto, fazendo uma revista sublime de todos os encantamentos teatrais da cidade. Os manipuladores expõem os truques todos, como se na apresentação de um circo de pulgas o amestrador avisasse previamente que não existe pulga alguma, e ao espectador coubesse ver o invisível e fazer vista grossa ao que entra pelos olhos dentro. O público desfia em conjunto com os actores o rol de memórias de atracções de cena que, por magia, ganham corpo. Número após número, a manipulação à vista dos objectos inanimados mostra a relação íntima mantida pelos marionetistas, actores e personagens, com os bonecos e máscaras que se escolhem para efígies e totens.

As marionetas somos nós, parece, manietados pela projecção das figuras que nos calham. As referências escondidas ao cinema e as piscadelas de olho ao público mais cúmplice coabitam com o humor físico e farsesco. A expressão dos universos dos criadores e intérpretes parece ressoar e repercutir no imaginário do espectador. O espectáculo é tanto sobre o circo e o cabaret, e sobre essas memórias, como sobre o romance de Vladimir e Matrioska, como sobre o próprio acto da manipulação, numa síntese bem feita entre arte e entretimento. Manipulando ícones do nosso imaginário, o Cabaret Molotov reproduz e materializa os sonhos pessoais dos autores, partilhando-os com o espectador mais ou menos anónimo. Nos claustros de um velho convento, convertido em sala de concerto, a memória do teatro encerra com um último olhar sobre o espectáculo da decadência de fim de noite no cabaré; e a manipulação dos objectos, representando continuamente a ilusão da arte e o fracasso do quotidiano, parece perguntar, mesmo quando nos rimos: o que fiz do meu sonho?

De Jorge Louraço Figueira

In Público de 23 de Dezembro de 2006

E se o convento se transformasse num cabaret?

O aviso no início do es­pectáculo é bem explí­cito: "Tapem os ouvi­dos!". Todavia, quem in­sistir em contrariar o apelo dará por si num inebriante cabaret onde os sentidos podem vaguear ao ritmo do tango. O segredo é não fa­zer a mente acompanhar com nexo a ritmada sucessão de números -e são muitos -, mas sim degustar os seus efeitos. Tudo acontece em "Cabaret Molotov", …



"Cabaret Molotov" chegará a surpreender o público com o seu encontro entre formas de expres­são pouco convencionais, "ape­nas com alguns elementos que fossem reconhecidos como o ita­liano e o russo".

Depois, há todo um excelente trabalho em que os actores - Edgard Fernandes, Sara Henriques. e Sérgio Rolo - intercalam a in­terpretação com a manipulação de marionetas….



"Cabaret Molotov" torna-se ainda num espectáculo maior por ser acompanhado pela ins­trumentista Shirley Resende, que vagueia por Gotan Project, Eric Satie, Robert Miny e Yann Tiersen.

O resto, o que não é perceptível à vista desarmada, deve ficar a de­ver-se à mística do espaço "gran­de e espiritual". …

De Marta Neves

In Jornal de Notícias de 7 de Dezembro de 2006



Vladimir ama Matrioska no cabaré do Teatro de Marionetas do Porto



Os caniches cantam Mack the Knife no original alemão de Brecht e Weill, os sapatos de salto alto dan­çam um tango dos Gotan Project, o coelho guarda a noiva na mala e ele, Vladimir Molotov, bebe vodka, por ele e por Matrioska. Poderia ser tudo cintilante e maravilhoso no Cabaret Molotov que o Teatro de Marionetas do Porto monta, a partir desta noite, no Convento de S. Bento da Vitória. Mas Vladimir ama Matrioska, a trapezista, e ela já não é deste mundo - porque este mundo, o mundo dos grandes circos soviéticos e dos míticos cabarés berlinenses, também não.



Apesar de replicar a estrutura de um espectáculo de circo, na sua divi­são em números, há vida em Cabaret Molotov para além das variedades que os actores Edgard Fernandes, Sara Henriques e Sérgio Rolo e a instrumentista Shirley Resende executam nos claustros do conven­to. …



De Inês Nadais

In Público de 7 de Dezembro de 2006

As marionetas também vão ao circo



…E a época na­talícia acaba por adequar-se a um espectáculo que tem poten­cial para agradar a um público dos oito aos 80 anos e que, ao mesmo tempo, representa uma visão alternativa do circo.

Cabaret Molotov organiza--se numa sequência de polaróides que se vão sobrepondo como números de circo, alter­nando entre ambiências circenses e de cabaré…



Para lá da força da expressividade das marionetas e dos actores, a quase ausência de linguagem verbal é uma das grandes apostas da peça, tornando-a acessível a pú­blicos diversificados.

De João Pedro Barros



In Sol de 8 de Dezembro de 2006



Cabaré Seara Cardoso



É uma visita ao imaginário dos cabarés berlinenses dos anos 30 e dos grandes circos soviéticos, mas é sobretudo uma visita ao imaginário de João Paulo Seara Cardo­so, o director do Teatro de Marionetas do Porto (TMP). Cabaret Molotov, a nova pro­dução da companhia, é uma mistura assim explosiva: um cruzamento entre coisas que nunca se tinham cruzado no historial do TMP mas que se atravessam há décadas na cabeça de Seara Cardoso.



De Inês Nadais



In Público de 12 de Dezembro de 2006



Das trincheiras ao cabaret



Com imaginação e engenho, João Paulo Seara Cardoso reinventa o teatro de marioneta no ambiente sombrio de um cabaret onde a dança e o circo se cruzam em coreografias desvairadas, nostálgicas, mas sempre atravessadas por uma leve ironia. Marionetas de luva, de vara e de tamanho humano ganham vida nas mãos de três performers (Edgard Fernandes, Sara Henriques, Sérgio Rolo), que criam os mais alucinantes números de music-hall, alternando a irrealidade poética, o nonsense e o grotesco.

Acompanhados pela música de uma instrumentista extraordinária (Shirley Resende), cujos volumosos cabelos espetados se erguem em direcção ao tecto, os trapezistas voam em câmara lenta, há caniches a ladrar o refrão de Mack the knifei; bailarinas inumanas rodopiam pelo ar ao som de valsas, uma for faz equilibrismo suspensa entre duas bocas. Para ver e ouvir com um sorriso nos lábios.

A fusão de técnicas e linguagens está bem patente nestes dois espectáculos, que integram um festival capaz de estabelecer confrontos no interior da diversidade, impulsionando, assim, a liberdade artística na criação contemporânea.

De Rita Martins

In Público de 7 de Junho de 2007

Um teatro poético e popular



Numa entrevista publicada no 4.° número da Sinais de cena, João Paulo Seara Cardoso partilhava uma das mais centrais premissas de muitos dos espectáculos do Teatro de Marionetas do Porto, a companhia que há largos anos dirige e que é um dos casos de maior felicidade criativa da nossa paisagem teatral contemporânea:

A nossa forma de fazer teatro assenta fundamentalmente na ideia de expor aos olhos do público a marioneta e o actor em relação íntima com os outros elementos cénicos, e explorar a dialéctica que daí advém. Neste contexto seria altamente restritivo usar só as marionetas, porque a marioneta não pode existir teatralmente sem o actor, elemento essencial da teatralidade. E o que é belo e ao mesmo tempo brutal nisto tudo é o confronto entre os actores e as marionetas: tanto um actor que manipula uma marioneta, como um actor que contracena com uma marioneta ou como os actores que vivem no mesmo universo, quase onírico, das marionetas. É todo este jogo, muito sedutor, toda esta dialéctica, de vida e de morte, de existência efémera, que pode provocar um estado especial em quem assiste a um espectáculo. (Cardoso 2005: 61-62).

Esta síntese exacta, então esboçada para recuperar o conjunto de processos cénicos que vinham orientando o percurso daquela companhia, serve ainda para caracterizar um dos mais recentes e mais conseguidos espectáculos de João Paulo Seara Cardoso. Apresentado como o resultado de um continuo "trabalho de experimentação", Cabaret Molotov leva um pouco mais longe o assumido investimento na manipulação à vista, isto é, na exploração performativa da indissociável articulação entre o intérprete e a marioneta ou, como o criador prefere, o "objecto cinético" - expressão mais justa, na realidade, para designar a multiplicidade de objectos animados pelos manipuladores, desde o boneco mais antropomórfico até à simples bola vermelha ou ao mais elementar bocado de madeira, sem qualquer expressão antes daquela que lhe emprestarão o corpo e a voz dos actores.

O criador cruza neste seu espectáculo a linguagem das marionetas com o imaginário e alguns dos recursos do circo, do cabaré e do music-hall, tirando o máximo partido da maleabilidade dessas formas populares de teatro. Historicamente anteriores à sistematização teórica e às experiências concretas de um "teatro popular" de ambições democráticas, proletárias e politicamente progressistas, estas tradições performativas tinham tradicionalmente o entretenimento como ambição dominante e caracterizavam-se por uma ostensiva despretensão artística e intelectual. Tal facto não impediu que tivessem servido, e continuem a servir, de estímulo para as pesquisas artísticas de alguns dos mais ousados criadores teatrais contemporâneos, que nelas vislumbraram um enorme potencial transgressivo e uma peculiar permeabilidade às mais variadas operações de adaptação, reinterpretação e reconfiguração cénica (cf. Schechter 2003).

Dado o manifesto interesse de João Paulo Seara Cardoso pelo cruzamento de disciplinas ou universos artísticos e pela exploração das suas mais imprevistas fertilizações, não deverá surpreender esta convocação do circo e do cabaré. A estratégia surge, apoiada numa forte presença musical, que se traduz na utilização de uma vasta panóplia de instrumentos, tais como o piano, a bateria ou o acordeão. Essa ampla dominância da música fica, aliás, claramente enunciada desde a entrada dos espectadores no espaço de representação, através da presentificação quase transparente de muitos dos recursos com que se realiza o espectáculo: os abundantes instrumentos musicais surgem concentrados sobre uma pequena plataforma, colocada à direita, na qual se instalará a instrumentista; ao centro, mais ao fundo, uma cortina vermelha ou pano de boca, apoiado numa estrutura metálica, sugere a possibilidade de multiplicação das áreas de jogo; de um lado e do outro do espaço de representação, diversos cabides e outros adereços completam a paisagem de um espectáculo cuja magia resultará da vida emprestada pêlos intérpretes aos objectos e às marionetas inicialmente inertes.

Apoiando-se na lógica de funcionamento do espectáculo de variedades, comum tanto ao circo como ao cabaré, Cabaret Molotov organiza-se em quadros, que se sucedem quase sempre interligados através das mais variadas soluções de continuidade. Depois de uma espécie de prólogo circense, em que um homem-bala é disparado de um canhão contra as cortinas, o primeiro quadro surge dominado pela figura, imediatamente cativante, de Vladimir, uma marioneta de pesado sobretudo castanho, a que o seu principal manipulador empresta um reconhecível, mas globalmente incompreensível, linguarejar russo. Estabelecido o diálogo de Vladimir com a trapezista Matrioska, representada por uma mais pequena marioneta com os braços agarrados a um trapézio, assiste-se à enunciação daquela que será a principal marca deste espectáculo e que o seu encenador apresenta como uma "poética do voo": liberto das leis da gravidade pela acção dos seus manipuladores, Vladimir facilmente descola do solo, entregando-se a uma liberdade de movimentos mais ilimitada do que a experimentada pela sua amada Matrioska. O mesmo, aliás, acontecerá com a generalidade dos mais variados "objectos cinéticos" convocados e manipulados durante todo o espectáculo, numa espécie de repetida coreografia aérea que reforça o delírio imaginativo em que aposta CabaretMolotov.

Vladimir regressará, mais tarde, embora desta vez seja a sua voz que se ouve primeiro, no escuro, chamando por Kristina - aparentemente o nome emprestado à intérprete musical de farto cabelo ruivo e saia de muitas camadas de tutu vermelho. Vladimir prolonga a sua ambição aérea, saltando agora numa cama elástica. Por mais de uma vez, cai, tosse, e sobre o solo, no meio do seu contínuo linguarejar, ouve-se algo que parece querer significar "maldita vodka". Alguém haverá de o pendurar num cabide, facto que não o impedirá de continuar a falar, acompanhando a intérprete musical numa melancólica canção francesa. No final, caberá também a Vladimir - uma vez recuperado do seu cabide, mas agora duplicado na figura de corpo inteiro do seu manipulador, equipado com um megafone e um candelabro - encerrar o espectáculo. Numa eloquente figuração da já referida dialéctica entre a marioneta e o seu manipulador, este último Vladimir dará de beber ao primeiro, beijá-lo-á, para depois voltar a fazê-lo desaparecer de cena.

Entre estes três momentos, sucedem-se outros números, nos quais se misturam - como no circo, como no cabaré, mas também como num deliberado, embora não necessariamente explosivo, cocktail cénico - as mais diversas criaturas e processos de lhes dar vida: três cabeças de caniche, que não são mais do que marionetas de mão manipuladas pêlos três intérpretes vestidos com fatos de palhaços ricos, interpretam Mack the knife, de Kurt Weill e Bertolt Brecht, ao som de diferentes latidos; três narizes redondos, ou três bolas vermelhas, são animados pelo mesmo conjunto de intérpretes, apostados agora num jogo virtuosístico de sincronização de movimentos e de variações sonoras; dois pequenos bonecos mais antropomórficos, manipulados por uma vara na cabeça, entregam-se a um bailado aéreo sobre uma comprida mesa saída de detrás da cortina; uma bailarina - quase magicamente criada em frente aos olhos dos espectadores, através da imprevista articulação de seis inexpressivos bocados de madeira - executa, sobre a mesma mesa, uma outra espécie de bailado, mais clássico, mas de incomparável elasticidade, desatenta ao perigo constituído pelas chamas de um candelabro colocado na proximidade da sua área de actuação; três pares de sapatos, ainda sobre a mesma mesa, manipulados por intérpretes de marcados chapéus na cabeça, interpretam um breve episódio de ciúme e desafio, ao som de um tango dos Gotan Project; um mais delirante homem-coelho reclama, num linguarejar italiano mais reconhecível que o russo de Vladimir, um beijo da mulher-coelha que retira da sua mala branca; três marionetas de corpo inteiro executam uma frenética valsa de salão, servida pelos movimentos rápidos, circulares e aéreos dos seus pares humanos; dois palhaços ricos entregam-se às mais cruéis e divertidas tropelias; uma rapariga de meias, ligas brancas e tiras de cor vermelha é manipulada, qual marioneta, por outro dos intérpretes. Mas ainda há o número executado pela actriz que traz consigo, como se fosse uma extensão do seu corpo, um pequeno teatrinho, de cujo palco vão desaparecendo uma casa e o seu habitante, um cão e uma vaca, à medida que um avião vai largando bombas sobre aquele minúsculo cenário; animado por um exigente jogo de manipulação e sonorização, este quadro introduz no espectáculo uma nota de mais tópica e perturbadora actualidade.

Cabaret Molotov é uma fascinante proposta cénica, dominada por jogos de alternância de escalas entre os intérpretes e os objectos e servida por demonstrações aparentemente inesgotáveis de humor e de imaginação. A extrema coerência do espectáculo só parece vacilar quando a opção figurativa cede a uma forma mais literal de poesia ou a uma espécie de inesperado mimetismo, uma alternativa aparentemente inaceitável neste universo onírico - como acontece num dos números finais, quando, depois de lhe terem despejado uma garrafa de champanhe sobre o corpo, uma mulher de lingerie preta recita um poema em espanhol. Se, como no circo ou nas variedades, a sequência de cada um destes números nem sempre é servida por uma mais elaborada lógica de motivação, tal fragilidade dramatúrgica é largamente compensada pelo imparável carrossel de figuras, pela hábil alternância de protagonismo entre a marioneta e os seus manipuladores e, sobretudo, pela contagiante invenção que acompanha a arrebatadora e encantatória execução de todos esses quadros. Edgard Fernandes, Sara Henriques e Sérgio Rolo demonstram ser, simultaneamente, actores, bailarinos, cantores e manipuladores, revelando uma versatilidade e uma energia interpretativas só possíveis pela consequência do trabalho desenvolvido no âmbito de uma tão coerente estética cénica. A instrumentista Shirley Resende completa o quarteto de magníficos intérpretes de um espectáculo que recupera fórmulas e convenções de comprovado apelo comunicativo para as injectar com um renovado fôlego poético e imaginativo.



De Paulo Eduardo Carvalho

In Sinais de Cena de 7 de Junho de 2007



CABARET MOLOTOV - Uma Vida Aérea Intermitente Une a Marioneta e o Trapezista

Começa por uma explosão; e é de uma explosão do que trata esta obra. Uma explosão de bom humor, de sátira, de música, de "nonsense" com sentido, de boa arte em geral. É algo a que João Pau­lo Seara Cardoso - director do Teatro de Marionetas do Porto - nos tem habitua­do desde sempre (não nos podemos es­quecer do magnífico "TrêsPorquinhos”!). Desde espectáculos para miúdos e graú­dos, sempre deixando um matiz picante no paladar. E disso também precisamos! Especialmente numa época tão difícil para as artes cénicas no Porto, esta com­panhia demonstra que esta cidade sabe fazer bom teatro, para toda a classe de públicos e que vale a pena apostar nele.

E como vivemos numa" época tão difícil a nível político, eis que reaparece o Cabaret com forma de circo: sátira sobre a guerra, erotismo em toda a parte, muita vodka ("cur­va vodka", não é Vladimir?), dança e boa música (Gotan Project, Eric Satie, Kurt Weil, Robert Miny e Yann Tirsen, que mais podemos pedir?). Com marionetas e intérpre­tes que se fundem - frequentemente não sabemos onde é que acaba a marioneta e começa o intérprete - manipu­lado magistralmente. Momentos inesquecíveis: paus que se transformam numa linda bailarina; um teatro dentro do teatro no qual observamos a guerra da maneira mais inocente possível, cães cantando, uma luta entre sapatos, dois clones competindo, palhaços a brincarem com os seus narizes... E não queria deixar de comentar o grande trabalho de Shirley Resende, uma mulher-orquestra que nos oferece alguns dos momentos mais doces do espec­táculo. Também aproveito para destacar o apresentador, Vladimir, um bêbado que resulta delirante, assim como a genial ideia de inventar e adaptar línguas que terminam percebendo-se, já que a única linguagem que tem sentido é a do poema "Me gusta cuando callas" de Pablo Neruda. Tudo o conjunto, sem tirar nem pôr, resulta num espectáculo que dura pouco mais de uma hora, que nunca nos aborrece e que nos mantém atentos do princípio ao fim, deixando-nos com vontade de mais quando a "cortina" (embora aqui não existam cortinas) desce.

De Sónia Estéban

In Revista Elegy 2007

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