Escrevi recentemente no jornal Público que os cortes no teatro, na dança e nos apoios a projectos musicais, eram cortes que mais do que económicos significavam que, para quem os faz, a democracia não é um valor, que eram cortes cegos e nessa medida não eram cortes económicos mas sim políticos e que seriam o sinal mais sintomático do princípio do desaparecimento de um Portugal muito injusto mas em que, apesar de tudo, se respirava de uma forma diferente dos últimos tempos do fascismo, os tempos de Marcelo Caetano, os tais da abertura, uma abertura com máscara de oxigénio – eu vivi-a no Conservatório Nacional de Mário Barradas e sei do que estou a falar. Um corte cego no teatro, na dança e na música, é um corte no corpo novo e jovem – que se sente com estas governações velho de descrédito e desespero, de impotência de um sentido - da democracia de Abril, parte dele constituído pela emergência destas formas artísticas como fruição pública regular para além de todas as “sacanices” do Estado. Pela natureza das próprias actividades – como se sabe o teatro é e foi em muitas partes do mundo e da história condenado e excomungado, e a dança identificada com o diabo (ainda há pouco um bispo mo dizia, com alguma ironia confesso, sobre a possibilidade de uso artístico de um espaço em ruínas mas ainda consagrado) - estas são actividades públicas de recorte polémico, político democrático, são um sistema pulmonar de alimento simbólico, ideológico, vital e afectam profundamente aquelas operações do mental chamadas pensamento que nos ligam a ideias de abertura e de vida, ao contrário de outros sistemas que nos ligam a ideias de violência e morte, lembremo-nos do Viva la muerte do legionário de Franco.
Uma sociedade sem teatro, sem dança, sem música - e sem livros, pois o livro é também um objecto ameaçado por muitas vias e mesmo por aquela via que parece fomentar a sua multiplicação, a do livro star, muitas vezes medíocre mas ocupando todo o terreno – o que será? O que será uma sociedade sem o Luís Miguel Cintra, a revisitação praticada de Pessoa e Camões, e desconhecendo Ibsen, Strindberg, Beckett, Brecht e todos os criadores da nova modernidade sensível, a da descoberta da subjectividade como forma embrionária de uma liberdade nova também, sensível e interior, profunda? O que será mais de que uma regressão absoluta à barbárie do analfabetismo e da iliteracia militantes – o culto de certa incultura tem expressões violentas e age no lugar da ausência da outra, da cultura do pensamento e do espírito enraizados no quotidiano - num momento em que a cultura dominante é o consumo, actividade que do ponto de vista simbólico cria dependências psicológicas e fetichistas nos altares do fluxo constante do espectáculo das mercadorias no âmbito da absoluta comercialização de todas as esferas do espírito? E tendo como catedrais de máxima eficácia arquitectónica, verdadeiros labirintos da compra sugerida imposta, os centros comerciais, para que as pessoas mimeticamente encarneirem sem recuo numa vertigem constante da aquisição, forma de satisfação cíclica de um desejo que encontra num fetichismo desqualificado o seu deus de bolso?
O deserto por vir será um deserto preenchido pelo universo made in China, essa nova americanização de segunda e todos vestiremos os mesmos pijamas numa nova província do mundo, situada nas adjacências comerciais de uma nova potência dominante, a campeã do novo capitalismo mundial, o capitalismo imposto pelo sistema partidário comunista, o mais eficiente.
A descaracterização do Portugal que balbuciou uma entrada tímida na Europa – que a sua mediocridade dirigente falhou – é o fim da Europa em Portugal. As velhas carroças vão agora percorrer as novas auto-estradas e as marroquinarias de todo o tipo chamam-se agora chineserias – da China não virá Shakespeare mesmo que venham senhoras de Fátima inquebráveis. A Ministra da Cultura ficará definitivamente ligada a este destino como mão agente. E o Ministro Teixeira dos Santos como responsável primeiro do crime. Do Primeiro-Ministro já não vale a pena falar.
Fernando Mora Ramos
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